RESUMO: Este artigo procura fazer uma breve reflexão sobre o kitsch e a poética psicodélico-visionária (1). Assumindo que a arte não deve possuir caráter utilitário, ser alguma forma de entretenimento, servir como objeto de decoração, buscar explicitamente comover, ser uma janela para o mundo exterior ou interior, características essas, entre outras, consideradas kitsch, investigamos onde a poética psicodélico-visionária na contemporaneidade se encaixa ou não dentro dessa estética particular.
ABSTRACT: This paper seeks to make a brief reflection about kitsch and psychedelic-visionary poetics. Assuming that art should not necessarily have utilitarian features, be some form of entertainment, serve as a decorative object, seeking cheap emotions, be like a window to the outside or inside worlds, these characteristics, among others, considered kitsch, we investigate where the psychedelic-visionary poetics in contemporary fits or not in this particular kind of aesthetics.
A Arte não serve pra nada (Oscar Wilde): a arte não é utilitária, se for, talvez nem seja arte. A arte não tem um papel prático em nossas vidas, mas isso não significa que não seja vital ou necessária. Nossa identidade pessoal ou coletiva não tem uma função clara, mas ela é fundamental para nossa habilidade de funcionar como uma sociedade (WHITE, 2004, p. 45) (2).
No livro 101 Things to Learn in Art School, Kit White traz a frase de Oscar Wilde: “A arte não serve pra nada”. Pessoas não ligadas a esses estudos poderiam se surpreender com desconfiança diante de tal declaração, porém, o fato é que, atualmente: “Qualquer coisa pode ser arte: a arte não é definida pelas técnicas ou os meios de sua produção, mas por um sentimento coletivo que pertence a uma categoria de experiência que chegamos a conhecer a arte” (WHITE, 2004, p.13). Os critérios artísticos são datados historicamente, alteram com o tempo e estão sujeitos a modalidades criativas em constante renovação. Tarefa hercúlea para filósofos e teóricos da arte darem conta de uma conceituação de arte que atenda toda a produção ocidental e oriental e em todas as épocas do passado até o presente e ainda projetar esse mesmo conceito para o que possa vir a ser no futuro… Com exemplos simples mais recentes podemos testemunhar essa dificuldade. Talvez pouco mais de uma década atrás pensar em graffiti como forma de expressão artística com “A” maiúsculo e que estaria exibida na Tate Modern em Londres seria inimaginável (3). Vídeo Games populares com status de arte? O MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque) em 2012 adquiriu 14 jogos que foram elevados a essa categoria como o famoso PacMan (4). O mesmo MoMA que começou em 1930 a colecionar fotografia moderna (5). Mais recentemente este museu abriu uma exposição de pinturas “lowbrown”, isto é, surrealismo pop (6), evidenciando a abertura que essa instituição possui em relação ao que é a produção de arte contemporânea. Enfim, voltando ao início do século 20, Marcel Duchamp trouxe os ready-mades, objetos industriais que retirados de sua condição utilitária, ganharam a possibilidade de serem pensados esteticamente (ninguém pensaria hoje “que mau gosto esse urinol virado em cima da mesa”). São buscas geniais da criatividade e inovação que, nem sempre, são compreendidas imediatamente. Segundo Danto:
O que separa os trabalhos artísticos dos não artísticos é o contexto sociológico. Tudo que for apresentado dentro de uma estrutura institucional como arte, seja museu, galeria ou, menos tangível, a comunidade de autodenominados artistas, críticos e historiadores de arte – será tratado como arte. (2006, p. 43)
Essa instituição, arte, se valerá de critérios diversos, nem sempre fáceis de discernir, nem sempre universais, para avaliar o que é ou não arte, o que é um trabalho bom ou mau, a despeito da intenção e motivação de quem a produziu: os trabalhos de Bispo do Rosário (1909?-1989) estavam na Bienal de Veneza de 1995, será que ele, quando recluso em uma cela de manicômio em vida, se preocupava com essa instituição chamada arte?
A guisa de exemplo, podemos examinar alguns autores que buscam conceituar e dar características do que seja a arte. Calabrese faz uma conceituação que parece suficientemente abrangente:
Qualidade intrínseca de certas obras produzidas pela inteligência humana, isto é, constituídas em geral só por materiais visuais, que manifeste um efeito estético, conduza a um juízo de valor sobre as obras em si ou sobre os seus conjuntos ou sobre os seus autores, e que dependa de técnicas específicas ou de modalidades de produção das próprias obras. (1986, p.8)
Denis Dantton apresenta sete características universais da arte:
Perícia ou virtuosismo. Habilidades artísticas técnicas são cultivadas, reconhecidas e admiradas.
Prazer não utilitário. As pessoas apreciam a arte pela arte e não requerem que elas as mantenham aquecidas ou que lhes ponha comida na mesa.
Estilo. Objetos e representações satisfazem regras de composição que as situam em um estilo reconhecível.
Crítica. As pessoas fazem questão de julgar, avaliar e interpretar obras de arte.
Imitação. Com algumas importantes exceções como música e pintura abstrata, as obras de arte simulam experiências do mundo.
Enfoque especial. A arte é distinguida da vida comum e dá um enfoque dramático à experiência.
Imaginação. Artistas e seus públicos imaginam mundos hipotéticos no teatro da imaginação.
Ellen Dissanayake descreve doze:
A manifestação de alguma habilidade especial;
A criação artificial de algo pelo homem;
O desencadeamento de algum tipo de resposta no ser humano, como o senso de prazer ou beleza;
A apresentação de algum tipo de ordem, padrão ou harmonia;
A transmissão de um senso de novidade e ineditismo;
A expressão da realidade interior do criador;
A comunicação de algo sob a forma de uma linguagem especial;
A noção de valor e importância;
A excitação da imaginação e a fantasia;
A indução ou comunicação de uma experiência-pico;
Coisas que possuam reconhecidamente um sentido;
Coisas que deem uma resposta a um dado problema.
As duas últimas citações acima foram escolhidas por terem sido usadas pelo psicólogo evolucionista Steve Pinker que, de forma crítica, rebate:
As raízes psicológicas dessas atividades [arte] recentemente tornaram-se tema de pesquisas e debates. Alguns pesquisadores, como a acadêmica Ellen Dissanayake, acreditam que a arte é uma adaptação evolutiva, como a emoção do medo e a capacidade de ver em profundidade. Outros, como eu, acreditam que a arte (exceto a narrativa) é um subproduto de outras três adaptações: a ânsia por status, o prazer estético de vivenciar objetos e ambientes adaptativos e a habilidade de elaborar artefatos para atingir os fins desejados. Desta perspectiva, a arte é uma tecnologia de prazer, como as drogas, o erotismo e a culinária refinada – um modo de purificar e concentrar estímulos prazerosos e enviá-los aos nossos sentidos. (2004, p.547)
Não deixa de ser uma interessante provocação do psicólogo evolucionista de Harvard. As duas citações podem mostrar algumas características presentes na arte, mas não fecham a questão, a arte se reinventa o tempo todo. Você pode pensá-la inclusive como uma forma terapêutica (7), segundo Henry Matisse (1869-1954):
Sonho com uma arte de equilíbrio, de pureza e serenidade, destituída de temas perturbadores ou deprimentes, uma arte que possa ser para todo trabalhador mental, seja ele um homem de negócios ou um escritor, como que uma influência apaziguadora, um sedativo mental, algo como uma boa poltrona onde repousar da fadiga física (READ, 1980, p.44).
Desde o passado vários movimentos artísticos surgiram em contraposição aos movimentos estabelecidos, oferecendo outras formas de interpretação, ideias, visões e direção inovadora. Os nomes de muitos desses movimentos foram dados de forma pejorativa: o Maneirismo, artistas que faziam “a maneira” dos Renascentistas, no sentido de “não serem tão bons quanto”; o Barroco, sinônimo de grosseiro; o termo Impressionismo surgiu pelo comentário irônico do pintor e escritor Louis Leroy em cima do quadro Impressão Sol Nascente de Monet; o Fovismo, “as feras”, como exclamou o crítico Louis Vauxcelles, pela violenta expressão cromática das pinturas. Esses batismos explicitavam preconceitos e pouca credibilidade no futuro das obras envolvidas, mas ficaram.
Um caso interessante é descrito por Tomaz Kulka. Se acreditarmos que para avaliar uma obra de arte podemos usar alguns requisitos básicos como: Unidade, Complexidade e Intensidade, Kulka nos traz um exemplo histórico da relatividade de tais critérios. Um trabalho inovador recebe uma pesada crítica devido a não ser capaz de cumprir os três requisitos básicos descritos acima, John Goldind comenta:
Esta é de muitas maneiras uma pintura insatisfatória. Para começar ela tem um estilo inconsistente. Mesmo um olhar rápido é suficiente para perceber que “fulano” (8) mudou de ideia várias vezes enquanto estava trabalhando; até ele mesmo considerou inacabado. (KULKA, 2002, p.48)
Matisse criticou o trabalho e o autor dizendo que o mesmo tentava, com essa obra, ridicularizar o movimento moderno. O artista em questão ficou bastante deprimido e a obra foi enrolada e escondida por anos (9). O quadro descrito é o Les Demoiseles D’Avignon de Pablo Picasso. São apenas alguns exemplos da fragilidade dos conceitos e das buscas por inovações que não param na arte ocidental.
Les Demoseiles D’Avignon – Picasso 1918
O que Busca a Arte?
Podemos observar que desde as pinturas rupestres o ser humano buscou representar sua experiência do mundo material e também do imaginário, seus mitos, visões e fantasias. A imitação do mundo, a mimese, foi forte na Grécia Antiga e depois no Renascimento. Estava ligada à beleza e os artistas eram valorizados por sua habilidade e virtuosismo especiais. Com o evento do abstracionismo a arte perdeu sua função de cópia ou interpretação do mundo tornando-se uma imagem autossuficiente.
Criar representações espirituais não é necessariamente uma função da arte que, ao contrário disto, pode centrar-se em si mesma. Refiro-me aqui que criar explicitamente representações espirituais como a imagem, por exemplo, de um anjo ou de um Buda, alguém em postura meditativa, não necessariamente faz do trabalho algo espiritual. Kandinski, Malevich, Mondrian, eram pintores que tinham fortes ligações com o esoterismo e a espiritualidade, mas o faziam através de formas abstratas que, na visão deles, eram mais adequadas do que cópias do mundo material.
Alexandre Cabanel (1823-1889). Nascimento de Vênus. Óleo sobre tela. Cerca de 1863.
É justamente nesse ponto que a reflexão deste artigo aparece: o kitsch. Fechar uma conceituação “definitiva” do kitsch é tão complexa como definir a arte. Possivelmente o termo surgiu na Alemanha entre 1860 e 1870, um jargão usado por pintores e vendedores de arte em Munique e empregado para designar objetos artísticos baratos (CALINESCU, 1987, p.234). Porém há várias teorias e estudos etimológicos que não caberiam no espaço disponível deste artigo. Pensar no kitsch como sinônimo de mau gosto ou de “cafona” ou “brega” estaria muito aquém da verdade e, enfim, como definir “mau gosto”? Ao longo do tempo quantas vezes isso se alterou? Tampouco se refere a algum tipo de má arte, quem sabe, talvez, mais para um tipo de pseudo ou falsa arte. As fronteiras não são tão nítidas:
Mesmo que aceitemos o ponto de vista de Clement Greenberg que o avant-gard é radicalmente oposto ao kitsch (10), temos que nos dar conta de que esses dois extremos se atraem fortemente e o que os separa é muito menos impressionante daquilo que os une. (CALINESCU, 1987, p.254)
De modo básico, quando se fala em kitsch, vem à lembrança aquela imagem de um pinguim de porcelana em cima de uma geladeira. Por que ele representa algo kitsch? É essa associação, simulação, esse deslocamento representado pelo frio gerado pela geladeira com a reprodução miniatura de um animal que vive em regiões geladas. Tão kitsch como a associação de uma jarra de plástico para suco no formato de abacaxi. Não cumprem o papel de símbolos, estão em uma literalidade forçada e vulgar, apesar de que, se não tomados tão a sério, que mal representam? O mesmo conceito pode se aplicar a reproduções como impressões emolduradas de obras famosas como a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ou casas com reproduções de colunas gregas em miniatura ao lado da porta de entrada e todas as simulações e deslocamentos do gênero que infestam a sociedade de consumo, tentativas equivocadas de imitação de status quo (11).
Representações da espiritualidade em uma pintura como, por exemplo, um anjo da guarda protegendo crianças que atravessam uma ponte, pode ser vista da mesma maneira. Não nos debruçamos aqui sobre o que seria ou não a fé e a religiosidade, estamos pensando na estética das imagens resultantes.
Anjo da Guarda.
O kitsch também está associado a formas de manipulação emocional, certo pieguismo, “emoção barata”, como descrito por Kundera (1985, p.253):
E preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças correndo no gramado! Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja o kitsch.
Essas manipulações emocionais estão presentes em imagens, filmes, novelas, nas reportagens, nas propagandas, na televisão, na vida do dia-a-dia. A expressão “novela mexicana” aqui faz todo o sentido. Porém, a reflexão buscada aqui parece caminhar mais em direção ao que o pintor norueguês Odd Nerdrum (1944-) aborda. Defensor da estética kitsch, ele relata como se posicionou em relação a esse conceito:
Eu estava numa festa. Nós estávamos sentados em volta de uma grande mesa bebendo. Ao meu lado estava sentada uma curadora Afro-Americana da ala de modernismo do Metropolitan Museum (Nova Iorque). Nós conversávamos sobre arte e estética, estava muito legal. Eu perguntei para ela: “O que está faltando na Arte Moderna? Isto é, o que foi deixado de lado?” “Bem,” ela falou, “talvez alguma coisa, mas eu gosto da Arte Moderna. O que você acha que está faltando?” Seu olhar parecia ansioso, ela mal podia esperar pela minha resposta. “Bem,” eu falei, “O que dizer de um por do Sol infinito?” Ela balançou a cabeça. “Isto está longe de ser Arte.” “Quente, maravilhosa pele e um rosto sensível com olhos te cativando.” “Oh! Sentimental demais,” ela falou. “Acabamento perfeito? Mais ainda, um acabamento poético?” “O quê?,” ela perguntou surpresa. “Um casal apaixonado sentado em um banco?” “Inconcebível,” ela exclamou. “Uma mulher nua e bela. Seus olhos dizendo: vem meu amor.” Ela gargalhou… “Mas isto é Kitsch!”
A partir disso eu entendi o que realmente eu era. (NERDRUM, 2011, p.7)
Se a pintura de um por do sol é imediatamente kitsch, já uma foto não, esta é vista como o objeto em si, diferente no caso da pintura: “a natureza em si mesma não pode ser considerada kitsch, somente suas representações podem” (KULKA, 2002, p.90) (12). Da mesma maneira, as outras imagens descritas acima por Nerdrum e tantas similares, podem cair na estética kitsch, porém, fazem parte naturalmente da vida e são coisas que todos, de um modo ou de outro vivem, mas que, em muitos casos não devem demonstrar, muito menos fazer representações pictóricas. Em relação à produção de pinturas, Nerdrum (2014, p.7) descreve algumas características mais dentro da estética kitsch defendida por ele (13):
O pintor kitsch não deve ser julgado por motivos nacionais, raciais ou religiosos em sua representação da vida – mas com base em qualidades intemporais.
O pintor kitsch não está protegido pela época na qual vive. Ele se esforça em representar as qualidades mais sublimes da história e deve ser julgado de acordo com elas.
Uma obra kitsch é boa ou má, um bom kitsch não deve ser qualificado como arte. Isto seria um erro de julgamento. Kitsch não é arte. Kitsch se refere ao sensual e o atemporal.
O pintor kitsch está comprometido com o eterno: Amor, morte e o nascer do sol.
Inovação não é importante, nem originalidade. Ir profundamente é o objetivo, pois na representação da natureza em si encontra-se a expressão individual (14).
Odd Nerdrum, Maenads, 2014, óleo sobre tela, 190,5 x 269 cm.
Apesar de que na arte psicodélico-visionária pouco importa a realidade material, ela está mais voltada a um universo interior muitas vezes ligado ao espiritual, busca o insólito que, para Kundera, não é o objetivo do kitsch. O interesse do psicodélico e visionário está no mundo inconsciente e irracional, no arquetípico, nos estados de consciência alternativos (15). São recorrentes as visões de paisagens fantásticas, já exploradas em outro artigo de minha autoria: Ecossistemas Entópticos: o “Inscape” na Poética Visionária e a Mimese Espiritual (16). Porém, as representações figurativas estão presentes com interesses similares aos já explorados largamente pelos artistas do simbolismo e decadentismo (17). A Arte psicodélico-visionária não é fácil de rotular. Como na arte de modo geral, ela pode ser qualquer coisa, desde que trate de visões, isto é:
A Arte Visionária pode ser entendida como um fazer artístico onde a produção está condicionada às experiências advindas de estados não ordinários de consciência.
[…] A Arte Visionária na atualidade não defende um novo estilo específico, é possível encontrar artistas visionários sem treinamento acadêmico, como os naïfs, ou muito técnicos e de grande destreza e virtuosismo similar aos hiper-realistas. Ela pode usar materiais convencionais de pintura e desenho, ou então todos os tipos de inovações tecnológicas da fotografia, cinema e computação. Embora predominantemente figurativa, há artistas que trabalham com formas abstratas ou uma mescla de ambas (MIKOSZ, 2009, p.114).
Schmürz, o monstro incógnito
No prefácio do livro Art Brut de Lucienne Peiry, Michel Thévoz descreve a história de um monstro, um ser mutante, que nasceu e cresceu em um apartamento de uma família burguesa que, deliberadamente, o ignora e segue com sua vida como se ele não estive ali. Thévoz se refere à arte bruta nascida no meio da cena artística estabelecida (PEIRY, 2006, p.07). É a arte que não busca a moda, do artista que não necessariamente tem treinamento artístico, que não procura imitar a arte de seu tempo, que busca suas próprias fontes, suas próprias invenções, impulsos e humor, sem se preocupar com as regras correntes (PEIRY, 2006, p.11). Na cidade de Baltimore nos EUA, há o AVAM (American Visionary Art Museum) (18) Fundado por Rebecca Hoffberger e pelo escultor cinético Hobart Brown em 1989, procura acolher trabalhos de artistas visionários e populares, muito próximo ao conceito de Arte Bruta de Jean Dubuffet. No catálogo do museu há a seguinte citação:
«A arte visionária como definida para os propósitos do Museu Americano de Arte Visionária (19) refere-se a arte produzida por indivíduos autodidatas, geralmente sem treino formal, cujas obras surgem a partir de uma visão pessoal inata que se revela mais importante no ato criativo em si memo.» Em suma, a arte visionária começa por ouvir as vozes interiores da alma e, muitas vezes, não podem sequer ser pensado como «arte» por seu criador. O tema mais comum de artistas visionários em todo o mundo é a recriação de algum Éden no quintal – uma utopia pessoal e privada. (AVAM, 2011, p.9)
O museu é um dos poucos do gênero em todo o mundo, mas podemos assistir o aumento da presença desse monstro incógnito, fazendo um paralelo ao psicodélico-visionário, em várias partes do mundo, só para citar alguns exemplos, como na Universidade de Greenwich na Inglaterra com o evento bienal Breaking Convention – International Conference on Psychedelic Consciousness (20), com discussões científicas e mostras de artes visuais e música; em Nova Iorque o evento anual Horizons – Perspective on Psychedelics (21); a criação em 2012 da Academia Vienense de Arte Visionária (22); o Instituto Wasiwaska no Brasil (23); mais recentemente a Universidade de Amsterdam, através dos professores Woulter Hanegraaff e Peter Forshaw, abre linha de pesquisa em Esoterismo Ocidental e Estados Não Ordinários de Consciência, além de receber no mesmo ano de 2016 o Interdisciplinary Conference on Psychedelics Research. Como exemplo em mostras oficiais de arte, na Bienal Internacional de Curitiba em 2015, no MuMA (Museu Municipal de Arte de Curitiba que fica no Portão Cultural), havia mais de 30 artistas ligados, de um modo ou de outro, a produzir ou registrar manifestações espirituais e religiosas como nas fotografias de Orlando Azevedo, Lina Faria e Mauro Restiffe, os desenhos de Tunga, a “Experiência MerzBauSubtropical” de Cleverson de Oliveira, trabalhos do Mestre Didi, Carybé e Rubem Valentim com influência de religiões afro-brasileiras, a presença de trabalhos de Bispo do Rosário, o imaginário simbólico de Stephan Doitschinoff, e a mostra do filme Ayahuasca dos artistas Sara Bonfim e Rafael Bertelli. Mais recentemente Marina Abramovich, uma das mais importantes performers de nosso tempo, esteve no Brasil buscando cura e inspiração para seus trabalhos artísticos, passando por diversas religiões inclusive as que comungam com o chá psicoativo ayahuasca (Santo Daime), segundo ela, uma das experiências mais difíceis de sua vida. Suas buscas resultaram no filme Espaço Além – Marina Abramivic e o Brasil, direção de Marco Del Fiol (24).
Isso tudo aponta uma direção nova? Ou apenas uma das características iniciadas com o pensamento pós-moderno de acolher várias tendências, evidenciando que a expressão artística possui vertentes diversas, nichos variados não hegemônicos, não há um totalitarismo estético de uma suposta elite artística e sim, possibilidades de pensamentos e reflexões por diferentes vieses, fugindo de uma esterilidade criativa nesse início de milênio?
Considerações Finais
Do exposto fica claro que a estética kitsch, já seja por sua herança do romantismo, pois, segundo Calinescu (1987, p.237): “mesmo que nós encontremos algumas relações formais entre o kitsch e o maneirismo e o barroco, o kitsch parece ser, historicamente, resultado do romantismo” (25) pode estar presente em trabalhos psicodélicos e visionários contemporâneos, porém, com três implicações: 1. Nem todos os trabalhos terão elementos kitsch: muitos são composições geométricas, incursões no abstracionismo, trabalhos mandálicos, obras inovadoras, etc. (26), fugindo do kitsch mais óbvio; 2. Alguns artistas trabalharão com o kitsch de modo inconsciente: produzirão de forma espontânea, muito próximo da influência do meio, da sociedade e da cultura, com temas clichês como a morte, sensualidade, amor, manipulações emocionais e de tentativas de reproduzir o belo como um “magnífico por do sol”, etc.; 3. Seu uso pode ter o mesmo viés buscado e defendido por Odd Nerdrum e outros artistas e pesquisadores, onde temas com a pecha de “clichê” acima podem ser considerados uma vantagem e liberdade, usados conscientemente como algo que é mais do que arte, nos arriscamos a dizer aqui que continua sim sendo arte, apenas outro viés dela, não a arte pela arte também da arte das ideias (conceitual) (27) como desenvolvida durante o século 20, mas a arte além da arte que é atemporal. Sua origem se perde na história da humanidade no mesmo momento em que esta desenvolveu misteriosamente sua consciência e iniciou a produzir imagens.
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