A noção de Inspiração Artística ganha um lugar de destaque na Teoria da Arte do final do Renascimento e podemos dizer que apesar de ter as suas raízes na Antiguidade clássica, é neste período, graças a uma apropriação do conceito, que este ganha uma nova vitalidade.
Francisco de Holanda (1517-1585) é um humanista, artista e importante teórico de arte português do séc. XVI que na sua obra dará especial ênfase ao papel da Inspiração no processo criativo. Apesar de rasgos de originalidade que podemos atribuir a este autor, as suas fontes são determinantes.
Na sua obra há uma defesa da importância da originalidade na criação artística como categoria estética fundamental. O verdadeiro artista será entendido como alguém cujo processo criativo, não mimético, é sempre original e sem precedentes, partindo da ideia ou imagem mental, que se situa no lugar mais secreto que temos, o pensamento. Valorizando a ideia, enquanto processo mental, em detrimento da execução, aspecto manual, Holanda está a destacar o estatuto intelectual do artista, entendido como aquele que pensa a arte. O momento da Ideia, é o da concepção e tem o primado sobre a Execução. Holanda determina que a maior parte da obra de arte esteja feita antes de ser executada pela mão. Defende, tal como Leonardo da Vinci, que a Arte é um processo mental, é uma declaração do pensamento. A Pintura é contemplação activa, isto é, será determinada pelo momento da invenção ou concepção e torna-se activa quando o artista lhe dá expressão empírica e material.
A originalidade da obra de arte parte da Ideia interior e o processo criativo é descrito por Holanda como um furor divino, em que o primado da visão interior supera a necessidade dos órgãos dos sentidos. Estando a ideia definida, o momento da execução artística deve ser veloz. O artista:
(…) porá velocíssima execução à sua idea e conceito, antes que com alguma perturbação se lhe perca e diminua; e se ser pudesse pôr-se com o stylo na mão e fazê-la com os olhos tapados, melhor seria, por não se perder aquele divino furor e imagem que na fantesia leva. (1)
A fase da exteriorização da ideia corresponde ao esquisso, uma espécie de esboço, de rascunho, trata-se de uma fase que tem o privilégio de não obedecer a regras racionais, é a manifestação da ideia que se dá quase de forma automática e incontrolável, em obediência ao divino furor e que antecede o desenho.
O furor divino, de que nos fala Holanda, é um conceito que no seio da Filosofia Renascentista e florentina estava muito em voga. Há uma equivalência evidente entre o conceito de “furor divino” e o de Inspiração. Este conceito é adoptado pela Academia de Careggi com ardor e divulgado essencialmente por Marsílio Ficino. A recuperação desse conceito nasce em parte do fascínio pelos clássicos, da leitura apaixonada de Platão e de outros autores da Antiguidade.
É em Landino, em 1482, que encontramos a primeira referência renascentista a este conceito, num comentário acerca de Dante, afirma, parafraseando Platão que a origem da Poesia é o Furor Divino:
“Ma che l’origine della Poesia sai piú eccelente che l’origine delleart umane, si manifesta (…) perche il divino furore, onde há origine la poesia, e piu excellente che la eccellenzia umana onde hanno origine le altri arti.” (2)
Também Christoforo Marsuppini, comentador de Ficino, tendo em mente o diálogo Fedro de Platão, defende que há quatro tipos de Furor Divino: o furor poético, o dos mistérios sacerdotais, o dos profetas e o do amor.
A grande referência destes humanistas é Platão, em particular o segundo Discurso de Sócrates em Fedro, onde este irá tecer uma série de considerações acerca da Mania, delírio ou loucura inspirada pelas musas. Este estado delirante não é pejorativo, pelo contrário, é uma virtude, porque tem origem divina. A loucura inspirada pelos deuses é, pela sua beleza, superior à sabedoria da qual os homens são autores:
“Seja quem for que, sem a loucura das Musas, se apresente nos umbrais da Poesia, na convicção de que basta a habilidade para fazer o poeta, esse não passará de um poeta frustrado, e será ofuscado pela arte poética que jorra daquele a quem a loucura possui.” (3)
Para Ficino a inspiração não é apenas um abandono da mente às forças irracionais como defendera Platão, pelo contrário, trata-se de uma operação extraordinária da mente do génio, onde entram em acção a memória, a inteligência e a sensibilidade. Ficino através dos seus comentários de Fedro e de Íon de Platão é portador de um novo tipo de Homem, que corresponde aos anseios da Renascença. Para além disto, há neste autor uma tendência claramente astrológica, cosmológica e mística, como é próprio do seu pensamento, atribuindo a origem do furor às esferas mais elevadas do cosmos. Ficino atribui aos Profetas e aos Santos, também susceptíveis a entrar em êxtases ou a terem revelações divinas como é o caso de São Paulo, o Furor Divino (4). Para este filósofo, o Furor Divino é uma iluminação divina, que só pode ser contemplada em cegueira, dando o exemplo de Homero que sendo cego foi de todos o mais inspirado dos poetas (5). Talvez por isso Holanda enfatize a imagem desconcertante do pintor desenhando com os olhos tapados (6), reforçando assim a importância do olhar interior, como aquele que capta a ideia ou imagem no pensamento, passagem que lembra inevitavelmente a expressão medieval “olhos interiores” de Santo Agostinho.
Apesar de Platão ter sido a grande fonte do conceito de Furor Divino, que maravilhou estes humanistas, podemos encontrar na Antiguidade Clássica outros registos, filosóficos e poéticos, que não só podem ter constituído as fontes de Platão, como podem também ter marcado os autores do Renascimento ávidos da leitura e da tradução dos textos clássicos.
A Poesia era para os gregos uma manifestação artística que não cabia na categoria da techné, isto é, não dependia de cânones nem de leis universais, mas sim da Inspiração. A Poesia estava acima de todas as artes. Havia Musas para todos os tipos de poesia: lírica, elegíaca, erótica, tragédia, comédia e relacionadas com estas surgiram também musas associadas à música e à dança, artes que sempre estiveram associadas à poesia, mas nunca houve Musas de Artes Visuais.
Em Homero a poesia não é vista como uma arte autónoma, mas como um privilégio que vem dos deuses. A sabedoria dos poetas vem das Musas (7). Os poetas são louvados acima de todos os mortais, pois a eles as Musas amam e ensinam (Odisseia, VIII, 487).
Também Hesíodo, no início da Teogonia, clama pelas suas musas inspiradoras, pois delas dependem os poetas para iniciar a actividade criativa, são estas que ensinam a Hesíodo o belo canto e que pelas suas palavras afirmam:
“Sabemos contar muchas mentiras que parecen verdades, y sabemos tambíen, cuando queremos decir esas verdades.” (8)
Também Demócrito, tradicionalmente considerado um filósofo pré-socrático, apesar de ser contemporâneo de Sócrates, considera a criatividade e a inspiração um estado especial da mente, diferente do vulgar. Esta tese dará origem à associação entre Inspiração e “possessão divina”, ou “loucura das musas”. Demócrito faz depender o talento artístico, não tanto da possessão das musas, mas da loucura, como um estado especial da mente:
“Tudo o que um poeta escreve com entusiasmo e sopro sagrado é, sem dúvida, belo.” (9)
Estas afirmações que antecedem os diálogos platónicos são as primeiras reflexões acerca da Inspiração artística, e tanto estas como as de Homero se fazem ecoar nos diálogos de Platão, nomeadamente em Íon e Fedro.
Em Íon, Platão defende que não é através da aprendizagem que os poetas criam os seus belos poemas, mas porque estão possuídos, fora de si, numa espécie de êxtase criativo. Neste diálogo Platão desresponsabiliza totalmente o poeta do seu poder criador, fazendo-o depender integralmente da inspiração divina:
“Com efeito, o poeta é uma coisa leve alada, sagrada; e não consegue criar, antes de sentir a inspiração, de ficar fora de si e o pensamento não habita mais nele; até que tenha essa aquisição, todo homem é incapaz de compor e de proferir oráculos.” (10)
Enquanto na Antiguidade e no Humanismo a tendência foi a de conceder o dom extraordinário da inspiração, como critério estético de qualidade e de autenticidade, aos poetas, aos filósofos, aos apaixonados, aos visionários e aos profetas (11), Francisco de Holanda, por sua vez, associa definitivamente o furor divino à Pintura e às artes visuais, através da sua tese original, na qual apresenta a imagem de um artista que pinta de olhos vendados para melhor captar a sua ideia interior, promovendo assim definitivamente o artista de mero executante mimético a docto pictor.
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